Eni Allgayer fazia uma sessão de autógrafos do seu último livro (de contos) Ciranda Negra na Feira do Livro de São Leopoldo, em 2011. Aproveitei a oportunidade para adquiri-lo, pois muito já ouvira falar sobre a capacidade literária da autora.
Entretanto, o título do livro me inquietou. Era paradoxal:
“ciranda” é uma música alegre, marcada, que se dança com vestes coloridas em
roda. Mas o que me intrigou foi o adjetivo “negra”. O que significaria? Mal?
Infelicidade? Morte?
E o livro foi para a minha “fila de leitura” (sempre tenho livros
não lidos: que recebo de presente ou que compro).
Ontem chegou a vez do livro de Eni. E de novo a capa com corvos
voando em círculo me incomodou.
E comecei a leitura. Li-o todo, sem parar com Eni me conduzindo
pelos meandros de suas narrativas.
O conto que dá título ao livro reporta a uma ciranda de justiça
feita com as próprias mãos, segundo o preceito bíblico “olho por olho, dente
por dente”. E a justiça negra é o prato dos urubus que, voando em círculo,
aguardavam seu alimento.
Eni mostra-se mestre em dizer sem escrever, em finais inusitados,
em levar o leitor interessado até o final do conto (em alguns deles respirei
fundo: ufa!), preso às personagens muito bem construídas (algumas pensei até
que conhecia) e na teia do enredo.
E as personagens? Quem são? Os pobres sofredores, marginalizados
por esta nossa sociedade de consumo, que se arrastam numa vida madrasta, sem
nem saberem bem por que vivem: catadores de lixo, favelados, maridos bêbados
que batem nas mulheres, agricultores pobres, e todos os demais pobres, para os
quais a “indesejada das gentes” (como diz Manuel Bandeira) volta sua atenção.
E não seria ela a liberdade? Como para Brunilda (do conto “Segredos”),
adolescente que inocente engravidou e foi desprezada pelo pai e pela mãe e para
ser livre como uma borboleta se atirou nua do galho de uma caneleira com uma
corda amarrada ao pescoço, voando de braços abertos rumo à água.
As personagens conduzidas pelo fio invisível da emoção de Eni
buscam essa liberdade que elas não sabem onde está. Talvez no “anjo negro”, que
está à espreita, esperando qualquer deslize para levá-las. Isso acontece de uma
maneira tão natural que ao leitor cabe conformar-se com o destino dessas
criaturas.
Um conto que explica muito bem o título do livro é “Um gato entre
achados e perdidos” cujas personagens que formam a ciranda são: uma faxineira
pobre, uma mulher rica e um ladrão de bancos, cujas vidas se cruzam. E como? A
faxineira espera para atravessar a estrada, o ladrão vem em alta velocidade e
colide com o ônibus no qual viaja a mulher rica. E a trama? Perfeitamente
urdida: a mulher havia matado o marido alérgico a picada de abelhas, com o
veneno delas, mas possuía uma segunda opção: uma garrafa de vinho com ricina,
toxina botulínica e curare. Na batida, a mulher atira a bolsa com a garrafa no
lixo que a faxineira pega e esconde, assim como faz com dois maços de notas do
carro do ladrão. Em casa, o marido bêbado tira-lhe a garrafa e bebe o vinho,
morrendo de “ataque do coração”. Mas ela ficou com o dinheiro.
O principal que senti nos contos que acabei de ler foi o
sentimento de Eni percorrendo cada personagem, cada local e tecendo a trama até
nos atingir, leitores, em cheio.
Ao terminar o livro parece-me ter entendido a antítese que tanto
me provocara: ciranda = alegria, vida, realçada pelo seu contrário: negra =
tristeza, morte.
Mardilê Friedrich Fabre
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