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O tempo quase, de Henrique Schneider, além de posicionar o leitor
diante de um sentido de quase, ao
abordar o tema da morte na adolescência, o coloca em contato principalmente com
a criação literária, dado que nas orelhas do livro desenvolve, em forma de
crônica, um contraponto ao enredo da novela. Tanto na declaração “é o meu
primeiro livro dirigido ao leitor adolescente” como na afirmação “a literatura
não está aí para responder perguntas ou passar mensagem”, o escritor continua
no terreno da criatividade, em espaço geralmente ocupado pelo texto de opinião.
No acúmulo da crítica a
narrativas anteriores, encontram-se apreciações que podem ser constatadas
também em O tempo quase. O leitor tem
a impressão de vivenciar os acontecimentos, justamente pela intensidade
dramática com que o escritor constrói as cenas. Consistente, a linguagem é
moderna e bem realizada, do ponto de vista da mistura da língua portuguesa com
a contribuição da linguagem advinda da expressão da juventude. De maneira
absolutamente fascinante, conta o motivo que levou Martina ao ato desvairado de
tentar a morte, de terminar com a própria vida, o que tem a ver com suas
dúvidas, sobre o momento certo de ceder ao desejo do corpo.
Em visita ao site de Henrique
Schneider, cujo endereço encontra-se ao pé da segunda orelha, é possível
reconstituir um retrato de escritor. Natural da cidade de Novo Hamburgo, onde
ainda reside, há muito tempo transita na advocacia, na imprensa e na cena literária.
Ainda jovem publicou a primeira novela, Pedro
Bruxo (1984), em edição da Metrópole e reedições da Caetés, pequenas
editoras. Em seguida, retorna com O Grito dos Mudos (1989), vencedor do Prêmio Maurício Rosemblatt, na categoria Romance,
editado pela L&PM e mais tarde pela Bertrand Brasil. Este romance obteve
excelente recepção da crítica, que apontou no escritor o domínio da arte e
poder de comover o leitor. Com A Segunda
Pessoa (1999), publicado pela Mercado Aberto, repete o acerto de mão no ato
de contar a história, prosa sensível, que desnuda aos olhos do leitor a
história de uma separação, conforme observou a escritora Simone Saueressig. O
quarto romance vem após quase uma década e arrebata o Prêmio Livro do Ano, da
Associação Gaúcha de Escritores/Ages, na categoria narrativa longa. Contramão (2007) conta a história de um
homem que ao fugir de um acidente segue em direção a seu destino.
A representação do drama do
suicídio na adolescência se configura, de acordo com O tempo quase, como um acontecimento na vida de famílias felizes,
normais, em que o jovem tem as necessidades atendidas e a proteção dos pais. A
médica Anita e os pais de Martina concordam em que seus filhos adolescentes
vivem com o melhor. “Eu entendo a sua angústia. Também sou mãe, tenho dois
filhos adolescentes em casa. A gente faz o melhor que pode, mas nem sempre
funciona: às vezes o nosso melhor passa ao lado do problema”. Contudo, o
escritor extrapola o horizonte familiar ao introduzir na história a personagem
do psicólogo, plantonista no hospital, cuja interlocução recoloca o problema em
dimensão mais ampla. Na longa cena de seu encontro com os pais de Martina, duas
intervenções se sobressaem: “a adolescência não é fácil de atravessar, e em
alguns casos ela pega mais forte” e “nós não sabemos o que se passa na cabeça e
no coração de quem namora. Sabe-se lá as expectativas de Martina com este
namoro, o quanto dela está jogado nesta relação”.
Com sua tentativa de suicídio,
Martina abre um mundo de complexidades da idade jovem que raramente os adultos
conseguem perceber. Mas alguns adultos, sem saber, conseguem agir perante a
dificuldade, por um sentido maior, como o faz a mãe Sônia. No curto espaço de
tempo, entre a descoberta do corpo pálido e olhos revirados até o momento em
que abre os olhos no quarto de hospital, Henrique Schneider costura um mosaico
de pequenas cenas que circunscrevem de modo poético um fato insólito como o
suicídio. Perante a morte, quem morre já não pode dizer palavras, mas deixa
entrelinhas. E o que dizer das entrelinhas desta novela?
As entrelinhas, quando
descobertas, revelam um conjunto de experiências poéticas, escritas e faladas,
que continuam em vigor no universo da juventude. Após a entrada na UTI, um
atendente entrega a Sonia um papel encontrado na roupa da filha. No bilhete,
Martina informa que não quer mais viver, não consegue viver sem Eduardo. Eis a
confissão amorosa sempre atual. Eduardo fica sabendo da situação e vai ao
hospital. Os pais informam que Martina está na UTI e não pode receber visitas.
Eduardo decide sair e procurar alguém com quem possa conversar. Procura um
amigo e sentam a conversar na lanchonete próxima de casa. Eis o valor da
amizade. A médica quebra as regras de horário da UTI e deixa Sônia e Renato
entrarem no quarto para ver a filha Martina. Neste momento, há o questionamento
da mãe feito ao pai sobre a razão pela qual a filha tomara aquela decisão.
Esquecem o drama, procuram ver onde poderia ter sido diferente. Eis o
sentimento maior que tudo supera.
No curso da novela, Henrique
Schneider intercala outros registros literários além do bilhete. Além de
imagens como “a noite batendo clara em seus rostos” (capítulo 9) e “teias de
aranha guardadas nos olhos” (capítulo 10), o leitor encontra páginas do diário
de Martina, em duas ocasiões diversas, relatando em uma o primeiro encontro com
o namorado, e na outra o medo de como será a primeira vez com Eduardo. E ainda,
a enriquecer a novela, há duas páginas registrando o pensamento interior da
mãe. Nelas, o escritor expõe ideias que oportunizam rever a denegação – que aparece
também em outras passagens do texto – e pode tornar a leitura bastante
oportuna. O cuidado com que constrói sua literatura, destinada ao público
jovem, reafirma a perspicácia de escritor e o legado crítico que tem acolhido
sua obra.
Wagner Coriolano de Abreu, autor de “Quando o teatro encena a cadeia”
(Ensaio, Editora Unisinos) e “Sempre aos pares” (Crônicas, Editora Carta
Capilé), professor universitário, vive em São Leopoldo – RS.
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