pois o mar é um
mistério
que nem os velhos
marinheiros entendem.
Jorge Amado
Pretendo empreender uma breve análise em torno da personagem de
Gumercindo, que possui o apelido de Guma, no romance Mar Morto de Jorge
Amado. Mar Morto é um romance no qual o autor descreve o cotidiano e a
importância do mar na vida de uma comunidade do cais. As pessoas que ali vivem
e sobrevivem são extremamente humildes levando uma vida muito simples. A
sobrevivência deles depende do mar como meio de transporte, com os alimentos
que vem da pesca e nos ritos religiosos para homenagear / saudar Yemanjá. Na
crença do povo local as águas do mar pertencem à Yemanjá, e ela defende as
pessoas que vivem no mar, mas no dia em que os marítimos morrem vão para as
Terras de Aiocá com a sua protetora. Guma é um dos atores deste cenário do cais
junto com seus amigos e seu tio o velho Francisco, que ensina Guma o trabalho
nos saveiros. Guma torna-se um jovem apaixonado pelo mar, e tem um amor tão
intenso que é capaz de colocar sua própria vida em risco inúmeras vezes
desafiando a força natural das águas.
Essa sua valentia e domínio nas artes do mar e dos saveiros o transforma
em uma espécie de herói quando salva um navio de nome ‘Canavieiras’.
Logo em seguida é reconhecido por todos como um herói e em uma festa de
Yemanjá vê uma linda moça, Lívia, que será sua esposa no futuro.
Lívia porém não está habituada com a vida do mar, e após seu casamento
com Guma, vive temerosa de que um dia receba a notícia da morte do marido nas
águas. Como precaução decide viajar na companhia de Guma. A princípio ele gosta
da presença de Lívia e há um clima de romance em toda esta atividade.
Algumas mulheres de outros marítimos procuram adaptá-la na nova vida,
explicam que a vida do mar é assim mesmo com muita naturalidade. Diversas vezes
se ouve a canção: ‘É doce morrer no mar...’entre outras.
Em um determinado período da vida de casado Guma sente-se atraído por
outra mulher,Esmeralda, durante o período da gravidez de Lívia. Embora sinta-se culpado
por trair a esposa e o amigo Rufino, não consegue resistir às investidas e
insinuações. Mas para os princípios da lei do cais ele deveria morrer pelo erro
cometido!
Guma sofre um acidente em uma de suas andanças marítimas fica ferido e
perde o saveiro. Lívia e seus tios oferecem a sociedade na quitanda deles na
cidade alta. Guma prefere permanecer como marítimo. Ele adquire um novo saveiro
com um empréstimo de João Caçula, e a ajuda quase espontânea do Dr. Rodrigo,
mas promete que deixará o mar quando as dívidas estiverem liquidadas. A esposa
dá a luz a um menino lindo. Guma começa a realizar algumas viagens
contrabandeando seda junto com os árabes. Desta forma consegue saldar suas
contas, mas termina surpreendido em uma tempestade no mar, após salvar dois
tripulantes do saveiro morre sem que seu corpo possa ser resgatado pelos
familiares e amigos.
Lívia fica muito triste e aflita, porém passado o sofrimento maior
decide prosseguir no mar navegando com Rosa Palmeirão.
Será que podemos atribuir a Guma, o herói marítimo em Mar Morto, a
afirmativa de Nietzsche (1992, p. 130) sobre o herói trágico? Quando diz que:
"o herói trágico alegra-se com o seu aniquilamento." Pois no caso
específico de Guma na perspectiva do herói que desde o início tem o
conhecimento / a percepção de seu destino, mas contudo não abandona sua
trajetória desenvolvendo cotidianamente seu trabalho árduo na travessia das
águas.
E o que vamos assinalar a respeito da atuação das mulheres nesta cena
toda, eu atribuo que são em parte heroínas, e têm o seu estandarte protagonizado
na pessoa e na ideia de d. Dulce, a professora, que está sempre sonhando /
vislumbrando um possível milagre na vida do povo do cais, embora Dr. Rodrigo, o
médico que trata as famílias do cais, não creia nesta possibilidade.
Por que estes homens e estas mulheres permanecem nesta situação de vida,
presos ao mar para sobrevivência, à medida que vão perdendo sua própria vida?
Talvez seja o amor à tradição de viver em torno das águas que pertencem
a Yemanjá, a Senhora que possui cinco nomes, que recebe as homenagens dos
homens e das mulheres nas festas que lhe são dedicadas, mas mesmo assim os
transporta para as "As Terras de Aiocá", quando passam da vida para a
morte.
E esta força mística está presente nas canções, nas poesias e no
movimento do vai e vem das ondas, como se a vida de todas estas pessoas fosse
ritmada pelo movimento marinho, pois o autor refere que o próprio modo de caminhar
das pessoas ligadas ao mar é diferente das que vivem na Terra.
O exercício de arrastar o saveiro para dentro e para fora do mar e
retornar inúmeras vezes com vida não é garantia de imortalidade. Muitos relatos
apontam que mesmo o mais peritos acabam sendo surpreendidos...na sua hora
derradeira. E esta é a ansiedade de Lívia e de todas as mulheres dos homens que
trabalham nos saveiros, sem contar a incerteza dos recursos financeiros que são
escassos ou sazonais, nestes momentos então eles necessitam alternativas, como
por exemplo, aceitar um trabalho de transporte de carga por menor preço,
realizar viagens de menor curso, trabalhar na pesca ou no conserto de velas e
de saveiros aguardando dias melhores, que nem sempre chegam.
Guma viveu este drama, quando estava muito próximo de ser coroado de
êxito, semelhante a Édipo triunfante em Tebas, é tragado pelas águas deixando
junto da família e de seus amigos apenas sua heroica lembrança, pois nem mesmo
seu corpo físico foi resgatado, transformado talvez em uma estrela do mar ou
cavalo marinho?
Referências
AMADO, Jorge.Mar Morto. São Paulo: Livraria Martins Editora,
S.A., 1936.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O nascimento da tragédia ou helenismo e
pessimismo. Tradução, notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia
das Letras, 1992.
Eloísa Silva Moura
Nenhum comentário:
Postar um comentário